quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Memória poética de Olhos D'água - Por Edvan Pacheco

Muito já se tem pesquisado e falado sobre a memória. Alguém (de quem não me recordo o nome) a definiu como “a arte do esquecimento”. Como assim? Quer dizer que uso minha memória esquecendo o nome desse sujeito? Tenho minhas dúvidas! Dizem também que nossa memória é associativa. Aí, sim, concordo. Resgato fatos passados associando-os a sensações que me ocorrem no presente. Por exemplo, às vezes, quando vejo uma moça de bermuda jeans curta, de azul bem surrado, lembro-me de uma professora que tive lá pelos onze anos de idade. Ela faria um bolo para comemorarmos a última aula do ano e dividiu os ingredientes entre os alunos. Fiquei de levar o fermento a sua casa. Chegando lá, era assim que ela estava vestida. (Se bem que uma terapeuta me disse que isso não tem nada de “memória associativa”; chama-se na verdade TOC, Transtorno Obsessivo Compulsivo).

De qualquer forma, quantos fatos ou pessoas um determinado cheiro já lhe fez recordar, heim? Os sons... esses, então, nem me falem. Músicas nos trazem a todo instante as mais variadas situações do passado. Dia desses, numa festa, quando iniciei ao violão os primeiros acordes de Detalhes, de Roberto Carlos, um colega me pediu pra parar. - Toca essa, não, por favor! - Por que você não gosta? Perguntei me fazendo de inocente. – Gosto, claro! Mas... sabe como é, né? Enquanto isso, a turba elevada a algumas doses gritava: Toca sim, toca sim! Toquei. Quem não queria ouvir cantou todas as estrofes e no final me falou das lembranças que lhe perturbavam quando ouvia aquela canção. Isso porque tudo o que se sente - os sons, as cores, as formas, o paladar enfim - se ressente.

Falando de música e lugares, Liverpool lembra quem? Brasília lembra tanta gente: Liga Tripa, Legião Urbana... Se o assunto for forró, Ceilândia lembra Trio Siridó, Paraibola. Se for rock and roll, Gama nos traz à tona, imediatamente, Fungos e Bactérias e Mastro Urbano. Na seara dos botecos, Batik e Botiquim Blues, na Taguá das antigas, são inesquecíveis. Quando o tema é roubalheira pública, Roriz e sua trupe roubam a cena. E assim vamos.

A poesia, essa então, está em todos os lugares. Senão, vejamos.

O último final de semana passei em Olhos D'água, lugarejo a 100 km de Brasília, onde ocorre a Feira do Troca nos meses de junho e dezembro. Com meu filho e acompanhado de uma amiga com o seu, escolhi a baixa temporada para me refugiar no silêncio e na vagarosidade daquela cidade. Logo na primeira rua, Drumond me saltou à memória:

(...)

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Mal botei o pé na porteira da fazenda onde ficamos hospedados, o cheiro de bosta de vaca e de cavalo ressuscitou Francisco Morojó, o Pezão, que, ironicamente, faleceu num acidente de carro quando ia para Olhos:

Goiás dos chapéus quebrados

das mulheres férteis

dos homens embrutecidos

das estradas de barro

das pinquelas interditadas

de mulheres abandonadas

e dos homens esquecidos

Anápolis e Goiania

valei-me Stª Cora de Goiás

quero sentir o cheiro

de baforadas de cigarros de palha

e aroma de merda de cavalos

que é pra esquecer

o peso das grandes cidades.

De volta a Brasília, é exatamente o peso da grande cidade que me faz lembrar, já com saudades, a leveza despretensiosa de Olhos D'água. É a tal história da memória associativa. Que logo, logo vai me fazer voltar.

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